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8 de jan de 2025 às 13:54
Numa atitude que gerou desconfiança entre os observadores da Santa Sé, o papa Francisco criou na segunda-feira (6) uma estrutura de liderança sem precedentes no Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica da Santa Sé, ao nomear uma freira como prefeita e um cardeal como pró-prefeito, solução que exige esclarecimento em direito e teologia.
A decisão incomum de nomear a irmã Simona Brambilla como prefeita e o cardeal Ángel Fernández Artime como pró-prefeito gerou discussões sobre a intersecção da hierarquia tradicional da Igreja e a visão do papa Francisco para a reforma.
Compreendendo o papel de pró-prefeito
O ofício de pró-prefeito do dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica não está previsto na constituição Praedicate Evangelium , do papa Francisco, que regula as funções da Cúria Romana.
No entanto, o papa Francisco instituiu o cargo ad hoc ao nomear o cardeal pró-prefeito e a freira, secretária até então, prefeita do dicastério.
Não foi dito como será o equilíbrio de poder entre a nova prefeita e o pró-prefeito. No entanto, falar de uma relação de subordinação com um cardeal que seria o “segundo na hierarquia” da prefeita não parece ser a leitura correta. Qual lógica levou o papa Francisco a fazer essa escolha?
Poder e autoridade na Igreja
Ao longo da história, houve uma reflexão ampla, complexa e às vezes controversa sobre a relação entre o poder de ordens, que é recebido com a ordenação e que permite administrar certos sacramentos, como a eucaristia, e o poder de governo, que dá autoridade sobre uma parte do povo de Deus, como uma diocese, uma ordem religiosa ou mesmo uma paróquia.
Por muito tempo, acreditou-se que os dois poderes eram distintos e que era possível exercê-los separadamente. Essa era a opinião de Santo Tomás de Aquino.
Sobre a Cúria Romana, acreditava-se que todos os que faziam seu serviço nela recebiam seu poder diretamente do papa, que lhes conferia autoridade independentemente de terem sido ordenados ou não. Isso também se aplicava aos cardeais, cuja autoridade derivava da criação papal, que, ao contrário da ordenação, não é um sacramento. O papa escolhe os cardeais como colaboradores e conselheiros no governo da Igreja.
Essa abordagem caracterizou a história da Igreja por um longo tempo. Tanto, que houve cardeais que não eram padres, como o cardeal Giacomo Antonelli, secretário de estado da Santa Sé de 1848 a 1876, ordenado diácono, mas não era padre. Em tempos mais remotos, houve cardeais nomeados em tenra idade que só receberam ordens depois de muito tempo, e até mesmo papas que eram só diáconos ao serem eleitos para o trono papal.
No passado, alguns abades nem sequer tinham sido ordenados padres e governavam um distrito eclesiástico, ou havia figuras que nos parecem estranhas, mas que respondiam a essa lógica, como os chamados bispos eleitos, que governavam dioceses sem receber a consagração episcopal, mas o faziam por causa de sua eleição. Outros exemplos incluem as chamadas abadessas mitradas, “mulheres com o cajado pastoral”, que exerciam sua autoridade sobre um território e os fiéis.
O impacto do concílio Vaticano II na governança da Igreja
Com o tempo, porém, surgiu outra abordagem que remonta à Igreja do primeiro milênio: o poder de governo está intimamente ligado ao sacramento da ordem sagrada, de modo que não é possível exercer um sem o outro, exceto dentro de certos limites, que são bastante estreitos.
Por isso, em 1962, o papa são João XXIII estabeleceu com o motu proprio Cum Gravissima que todos os cardeais deveriam ser bispos ordenados.
Essa é a abordagem do concílio Vaticano II, que se encontra, por exemplo, na Lumen Gentium , n.º 21, na nota explicativa n.º 2, e nos dois Códigos de Direito Canônico, o latino e o oriental.
O concílio Vaticano II reiterou com autoridade que o episcopado é um sacramento e que, pela consagração episcopal, alguém se torna parte do Colégio dos Bispos, que, junto com e sob a autoridade do papa, é o sujeito do poder supremo sobre toda a Igreja.
Essa abordagem foi seguida nas duas reformas da Cúria Romana que se seguiram ao concílio Vaticano II: a constituição Regimini Ecclesiae Universae (1967) do papa são Paulo VI e Pastor Bonus (1988) do papa são João Paulo II. São João Paulo II dividiu a Cúria em congregações e conselhos pontifícios, que em termos leigos podem ser definidos como “ministérios com pasta” e “ministérios sem pasta”.
As congregações tinham que ser governadas por cardeais porque eles participavam das decisões da Igreja universal com o papa e, portanto, seus chefes tinham que ter o posto de primeiros conselheiros do papa. Os conselhos pontifícios, por outro lado, também podiam ser liderados por bispos, mas de qualquer forma, por ministros ordenados porque eles ainda tinham que estar em colegialidade com o bispo de Roma — ou seja, o papa.
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Reforma da Cúria de Francisco: abrindo novos caminhos
A constituição apostólica Praedicate Evangelium , com a qual o papa Francisco reformou a Cúria em 2022, afastou-se dessa abordagem. Não há mais distinção entre congregações e conselhos pontifícios, que foram todos definidos como dicastérios. Também não há mais diferença entre quem pode ser o chefe do dicastério, podendo ser até um leigo.
Ao apresentar a reforma da cúria em 21 de março de 2022, o então padre Gianfranco Ghirlanda, criado cardeal pelo Papa Francisco no consistório de 27 de agosto de 2022, disse que ainda havia alguns dicastérios nos quais era apropriado que um cardeal liderasse e que a “constituição não revoga o Código de Direito Canônico, que estabelece que em questões que dizem respeito aos clérigos, os clérigos são os únicos a julgar”.
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Na prática, a missão canônica não era mais dada por ordem, mas por decisão do papa. É por isso que um leigo como Paolo Ruffini pode estar à frente do Dicastério para a Comunicação da Santa Sé.
Esse é o cerne do debate: existem cargos que podem ser exercidos só por nomeação papal ou existem cargos que, apesar da nomeação papal, exigem que a pessoa seja ordenada?
A questão surge quando um pró-prefeito apoia a irmã Brambilla. O dicastério para Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica tem várias competências, mas todas as competências são atos genéricos de governança que podem ser exercidos sem ordenação sacerdotal. Há situações de julgamento de clérigos, no entanto, e provavelmente pensou-se que essas decisões não podem ser tomadas por quem não foi ordenado.
Assim, a figura do pró-prefeito foi criada. A definição de pró-prefeito parece, no entanto, ser usada de forma imprópria. O documento Praedicate Evangelium descreve dois pró-prefeitos que são os chefes das duas seções do dicastério para a Evangelização. Isso ocorre porque esses dois pró-prefeitos lideram as seções do dicastério “no lugar de” (pró) um papa, que é o prefeito do dicastério.
Em outros casos, um bispo que ainda não tinha o grau hierárquico para ocupar o cargo formalmente era nomeado pró-prefeito. Por exemplo, quando Angelo Sodano foi nomeado secretário de Estado da Santa Sé em 1º de dezembro de 1990, ele ainda não era cardeal. Por isso, foi nomeado pró-secretário de Estado porque a constituição apostólica Pastor Bonus previa que o secretário de Estado sempre seria um cardeal. Sodano manteve o título de pró-secretário de Estado até o consistório de 28 de junho de 1991, quando foi criado cardeal e assumiu formalmente o título de secretário de Estado a partir de 1º de julho de 1991.
O pró-prefeito Artime, no entanto, já é cardeal e não exerce jurisdição no lugar do papa. Ele trabalha ao lado da prefeita, Irmã Brambilla. Seu papel é mais de co-prefeito, e ainda não se sabe se o papa nomeará um secretário para o dicastério para entender o organograma.
Um modelo jesuíta para a governança da Igreja?
A escolha de colocar um eclesiástico ao lado da prefeita reflete algumas ordens religiosas, que têm “irmãos” (leigos consagrados) no comando, mas são nomeados ao lado de figuras com autoridade sacramental.
Portanto, o papa Francisco teria escolhido seguir um caminho já seguido por congregações religiosas para a governança da Igreja. Isso não é novidade. O papa Francisco, por exemplo, também interveio na Ordem de Malta justamente ao operar sobre a ordem como se fosse só uma entidade religiosa e monástica, impondo as novas constituições em setembro de 2022 e estabelecendo que o papa precisa confirmar a eleição do grão-mestre da ordem.
O Conselho de Cardeais, estabelecido pelo papa Francisco no início de seu pontificado em 2013, se assemelha ao conselho geral que apoia o governo do superior-geral dos jesuítas, ordem da qual Francisco faz parte.
Muitas dessas definições são dadas pelo principal conselheiro jurídico do papa Francisco, o cardeal Ghirlanda, também jesuíta, que acompanhou pessoalmente a reforma da Ordem de Malta e a reforma da Cúria — assim como várias outras reformas, como a dos estatutos dos Legionários de Cristo.
Olhando para o futuro: implicações e questões
O papa Francisco estabeleceu uma inovação na Cúria Romana sem delineá-la com uma lei precisa, deixando a gestão das competências para decisões subsequentes, ao não usar os critérios do governo da cúria, mas sim os das congregações religiosas.