Professor de Literatura na juventude, Papa Francisco teve encontro inusitado com Jorge Luis Borges, um dos maiores nomes da literatura do século XX.
Por Lucas Daniel Tomáz de Aquino*
Após a morte do Papa Francisco, ocorrida nesta segunda (21), muitas pessoas que não conheciam a vida e a obra do então Sumo Pontífice começaram a buscar mais sobre sua figura, sua personalidade e seus escritos. Nas plataformas de streaming, o filme Conclave, de Edward Berger tornou-se o filme mais assistido do Prime Video.
Nascido em Buenos Aires em 17 de dezembro de 1936, filho de imigrantes italianos, o futuro Papa diplomou-se primeiro como técnico em Química antes de entrar para o seminário diocesano de Villa Devoto, na capital argentina.
Depois iniciou seu noviciado na Companhia de Jesus em 1958 e licenciou-se em filosofia em 1963, tendo se formado também em teologia seis anos depois, sendo ordenado em 13 de dezembro de 1969.
Leitor assíduo desde a juventude, antes de se tornar Papa Jorge Mario Bergoglio foi professor de literatura e psicologia no Colégio Imaculada Conceição. “Entre 1964 e 1965, quando tinha 28 anos, fui professor de literatura numa escola jesuíta, em Santa Fé”, confessou ele na Carta sobre o papel da Literatura na educação, de julho de 2024, publicada no site do Vaticano.
Seus autores favoritos eram diversas vezes citados em cartas e entrevistas. Dante Alighieri, por exemplo, o “profeta da esperança”, segundo palavras do próprio Papa, fora alvo de uma carta apostólica chamada Candor lucis aeternae (Esplendor da vida eterna), de 2021. Nela, Francisco lembrava os 700 anos da morte do poeta italiano e ressaltava a atualidade e a profundidade da Divina Comédia como laços entre Deus e o homem.
Outro autor clássico a quem o Papa Francisco mantinha admiração era Fiódor Dostoiévski, cuja dimensão psicológica de seus personagens, a fé e a essência do sofrimento humano é bastante conhecida. Em 2016, ao jornal italiano Corriere della Sera, ele chegou a dizer que o autor russo o inspirava a escrever suas homilias: “Dostoiévski me ajudou muito na pregação”, confessou citando Os irmãos Karamazov e Memórias do subsolo.
No ano passado, uma profunda e divertida entrevista ao canal de TV argentino Orbe 21 da Arquidiocese de Buenos Aires ganhou a internet. Nela Francisco dizia à repórter Bernarda Llorente: “Não podemos formar sacerdotes burros que nunca tenham lido Dostoiévski. O humanismo é fundamental na formação sacerdotal”.
Para Francisco, em cuja exortação apostólica Querida Amazônia ele citou mais de 15 poetas e escritores, incluindo o recém falecido Mario Vargas Llosa, a literatura conduz à contemplação: “poetas contemplativos e proféticos ajudam a libertar-nos do paradigma tecnocrático e consumista que sufoca a natureza e nos deixa sem uma existência verdadeiramente digna”, escreveu ele em 2020.
Para o então Papa, a prosa ainda consegue criar algo que “lê o coração do homem, ajuda a acolher o desejo, o esplendor e a miséria”. No caso da poesia, “ela proporciona liberdade interior e criatividade”, diz ele no prefácio do livro Viva la poesia!, uma antologia de textos sobre a literatura compilada pelo padre italiano Antonio Spadaro.
Publicado em março deste ano na Itália, enquanto o mundo acompanhava de perto o calvário de Francisco no hospital Gemelli, o livro traz diversas influências literárias do Papa, como John Ronald Reuel Tolkien (1892-1973), Virgílio (70 a.C-19a.C), T. S. Eliot (1888-1965) e Jorge Luis Borges (1899-1986).
Papa literato e barbeiro do escritor
Este último autor soube pessoalmente do grande apreço de Bergoglio para com sua obra durante um telefonema intermediado por uma antiga professora de piano do sacerdote. Na linha telefônica, o escritor recebeu o convite para uma série de palestras aos jovens do colégio de Santa Fé, em 1966.
Sobre esta admiração, Francisco confessou: “Eu admirava e estimava muito Borges. Fiquei impressionado com a seriedade e dignidade com que ele viveu sua vida. Ele era um homem muito sábio e muito profundo”.
O trecho citado faz parte de sua autobiografia intitulada Esperança, publicada este ano no Brasil pela editora Fontanar. Nela, Francisco dedica um caloroso excerto de memórias junto ao autor de O Aleph.
Jorge Luis Borges não só aceitou o pedido de Francisco para uma palestra no colégio como deu mais algumas aulas, versando especialmente sobre dos gaúchos na literatura, tema anteriormente abordado em Ficções, seu livro mais célebre.
Em uma das viagens para chegar ao colégio, conta o Papa em sua autobiografia, o aclamado escritor não se furtou a encarar cerca de oito horas de viagem em um ônibus velho que partia de Buenos Aires rumo a Santa Fé, só para ministrar suas aulas.
Em outra oportunidade tiveram de buscar o escritor em um hotel. Após estacionarem o carro na porta do edifício, o futuro Papa solicitou para que o pupilo que estava ao volante aguardasse no carro. Subiu ao quarto do escritor no terceiro andar e demorou mais do que o esperado.
Quando os mestres finalmente chegaram o aluno fez um gesto para Francisco como quem pergunta “O que aconteceu? Por que a demora?”. O professor, disfarçando e falando baixinho, respondeu: “Borges me pediu para que o barbeasse”.
Sobre a anedota, o ex-aluno chamado Jorge González Manent disse ao periódico colombiano Semana: “Eu jamais imaginei que precisaria relembrar esse momento tanto tempo depois”.
As aulas de literatura no colégio Imaculada Conceição renderam mais ainda: um livro de contos chamado Cuentos originales prefaciado pelo próprio Jorge Luis Borges, fruto do incentivo prático de Francisco em questões literárias.
Encorajando os alunos a escreverem seus próprios textos após ter ministrado um curso de Escrita Criativa, Francisco reuniu os contos que viram a compor a publicação do livro. A primeira impressão foi feita em novembro daquele mesmo ano, custeado pelo colégio em Santa Fé.
No prólogo, Borges mostra-se generoso e entusiasmado ao dizer que “sua publicação será um estímulo para os jovens que os escreveram e um prazer, não isento de surpresas e emoção, para aqueles que o lerem”. Por fim, salientou: “Este livro transcende seu propósito pedagógico original e alcança, intimamente, a literatura”.
Lembrando-se novamente com carinho de seus jovens alunos, em 2006, o então Cardeal Jorge Bergoglio se lembrou do trabalho literário e quis relançar o livro, confiando a tarefa a Jorge Milia, seu ex-aluno na Argentina.
Já como Papa, Francisco pediu que o livro Cuentos originales alcançasse uma terceira edição, o que foi prontamente atendido e editado pela La Civiltà Cattolica, em 2014, lançado pouco mais de uma década antes de sua morte, ocorrida nesta segunda-feira.
Essa lembrança carinhosa mostra a humildade e lembrança viva do Santo Padre. Ele jamais se esqueceu nem de seus alunos, tampouco de seu rebanho enquanto pastor da Igreja Católica. Pois para ele, citando Borges na carta sobre o papel da literatura publicada no ano passado, o que mais importa é ouvir a voz do outro, seja a de um grande mestre da literatura, seja a voz do próprio povo, que como diz o ditado, também é a voz de Deus.
*Lucas Daniel Tomáz de Aquino é coordenador e professor da Pós-Graduação em Filosofia Tomista da Faculdade Vicentina (Brasil). Vinculado ao Studia Poinsotiana do Instituto de Estudos Filosóficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Membro da Sociedade Brasileira para o Estudo da Filosofia Medieval.