Paiva: “a preservação da memória é um ato de resistência contra o esquecimento e o ódio por um futuro de concórdia. Só há um caminho para a paz: por meio da solidariedade entre as pessoas, da união dos povos e da ação dos movimentos sociais”.
Alicia Lopes Araújo
“Eles querem que fiquemos tristes, e nós sorrimos!”: essa centelha de esperança, que transparece no rosto dos protagonistas de “Ainda estou aqui”, posando para uma foto no momento mais dramático de suas existências, permeia todo o filme dirigido por Walter Salles, vencedor do Oscar 2025 de Melhor Filme Internacional. Baseado no romance autobiográfico “Ainda estou aqui” (Sono ancora qui – Roma, La Nuova Frontiera, 2025, páginas 288, 18 euros, tradução de Marta Silvetti) de Marcelo Rubens Paiva, narra o desaparecimento de seu pai Rubens Beyrodt Paiva durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). Em 1971, o engenheiro Paiva foi sequestrado, torturado e assassinado, deixando para trás sua esposa Eunice e cinco filhos. Durante anos não se teve notícias dele e seu nome foi adicionado à longa lista de desaparecidos. Apesar da tragédia, a família não se rende ao desespero e ao imobilismo, em um momento em que tudo parece estar afundando na escuridão da opressão.
“Era muito difícil manter a esperança, vivendo em um regime tão absurdo. Naquela época, não sabíamos de muitas coisas, inclusive do fenômeno dos desaparecimentos políticos para eliminar opositores”, enfatiza Marcelo Paiva ao nosso jornal. ”Acredito que, se não tivesse sido alimentada pela esperança, minha mãe jamais teria embarcado em uma luta de uma vida inteira para descobrir a verdade sobre o destino do meu pai e as razões do que aconteceu. Somente a fé inabalável na resolução do caso deu coragem a ela e a toda a família’.
Eunice, nessa tragédia íntima, foi capaz de impulsionar, ao longo das décadas, uma força centrífuga em direção à busca da verdade e da justiça, tanto pessoal quanto coletiva. “Por meio da militância política, encontramos uma forma de conviver com a dor e a injustiça. Não foi uma escolha planejada, mas espontânea. Com minhas irmãs, assim que começamos a desenvolver uma consciência política, nos envolvemos na luta contra a ditadura. Minha mãe lutou pela redemocratização nacional, por eleições diretas e pela Assembleia Constituinte, e conseguiu a inclusão de um artigo que protegia os povos indígenas na Constituição de 1988. “Em vez disso, escolhi a literatura como uma luta e uma missão. Escrevo para contar histórias, falando para os jovens, para que certas atrocidades nunca mais se repitam. Acredito que na resistência sempre é possível encontrar recursos para seguir em frente, para sobreviver, sem ser dominado pelo desespero”.
A preservação da memória é um ato de resistência contra o esquecimento e o ódio por um futuro de concórdia. “Só há um caminho para a paz: por meio da solidariedade entre as pessoas, da união dos povos e da ação dos movimentos sociais, como no caso das manifestações contra a guerra nuclear na década de 1990, quando as pessoas saíram às ruas em muitos países em favor do desarmamento. O mesmo aconteceu contra a guerra no Vietnã. As pessoas devem voltar às ruas e as organizações sociais devem mobilizar novamente estudantes, sindicatos e cidadãos. Isso aconteceu com os movimentos ambientais e as lutas feministas. A participação é necessária. Somente dessa forma poderemos lutar pela paz e mudar o mundo, fazer com que nossa voz seja ouvida, exigindo que as autoridades tomem uma posição”.
Compostura e valores compartilhados são o fio condutor que orienta as ações dos Paiva. “A dignidade de minha família sempre foi inspirada em minha mãe. Ela tinha uma dignidade profundamente cristã, baseada na conciliação e nunca na vingança. Ela sempre olhou para o futuro e nunca para o passado. Ela queria contribuir para a melhoria de seu país por meio do diálogo, chegando a acordos, sem criar discórdia. Portanto, sua luta foi um exemplo para todos nós, mostrando-nos como devemos agir diante de uma situação de conflito. Isso também se aplica à minha literatura. Em meus escritos, nunca dei espaço ao ódio, ao rancor ou à vingança, mas ao sentimento de lucidez, tentando contar, explicar com clareza e expressar meus pensamentos sobre como melhorar o Brasil por meio da paz, da transparência, da busca e da memória da verdade”.
Vinte e cinco anos após sua morte, Eunice recebe o atestado de óbito de seu marido. No momento tão esperado, ela mostra sorridente o documento para os fotógrafos. “Foi nesse instante”, escreve Paiva, ‘que entendi: ela era a verdadeira heroína da família; deveríamos ter escrito sobre ela’.