Sessenta anos após a encíclica de Paulo VI, o arcebispo de Turim Dom Roberto Repole comenta a relevância de um texto “pioneiro” que “recolocou a Igreja no caminho do diálogo com a modernidade”. Um diálogo necessário, desde que não seja acrítico.
Antonella Palermo – Vatican News
A lição de Paulo VI “pode ser reatualizada no mundo de hoje”. São palavras do Arcebispo de Turim, Dom Roberto Repole, em entrevista à mídia vaticana, por ocasião do 60º aniversário da Ecclesiam suam, a primeira encíclica do pontificado de Montini.
Qual foi o maior mérito da encíclica de Paulo VI na época em que foi escrita?
A encíclica foi escrita enquanto o Concílio Vaticano II estava ocorrendo em Roma, que, de acordo com o grande teólogo Karl Rahner, foi o primeiro Concílio da Igreja “sobre a Igreja”. Parece-me que o principal mérito do documento de Paulo VI foi enfocar a autoconsciência da Igreja sobre si mesma, ou seja, o fato de que ela é, antes de tudo, um mistério, que pertence ao plano salvífico de Deus para a humanidade. Ao mesmo tempo, o documento teve o mérito de destacar a missão estrutural da Igreja no mundo e o desejo de dialogar com o mundo contemporâneo, marcado por uma modernidade com relação à qual a Igreja teve algumas dificuldades no passado. Esses dois aspectos já antecipavam alguns dos principais temas de duas grandes Constituições do Vaticano II, como a Lumen gentium e a Gaudium et spes.
Como a encíclica foi recebida?
Eu diria que ela foi recebida dentro da estrutura mais ampla da recepção dos temas do Concílio Vaticano II. Certamente, na encíclica havia elementos de grande novidade, como, por exemplo, o fato de que a missão da Igreja deve ser realizada de acordo com o cânone do diálogo, porque a maneira pela qual Deus se revela ao homem é precisamente a do diálogo. Era uma novidade em comparação com certas formas do passado recente, que talvez nem sempre tenham sido marcadas por essa simpatia, poderíamos dizer, da Igreja com o mundo.
À luz desse texto, a experiência do Sínodo de hoje está mudando a Igreja, de que maneira?
Parece-me que a experiência do atual Sínodo pode proporcionar uma maior consciência do que é a Igreja, quando não se segue a fácil retórica do momento. Como eu disse, Paulo VI, na Ecclesiam suam, colocava em evidência que a consciência que a Igreja tem de si mesma é a de ser um mistério, de ter a ver com Cristo que envia seu Espírito. Em algumas passagens, o documento sublinha como há um vínculo íntimo entre Cristo e sua Igreja, sem o qual não se pode entender o que é a Igreja. Parece-me que hoje se trata de redescobrir tudo isso e que esse vínculo também sustenta os vínculos entre os vários sujeitos eclesiais, vínculos não tanto de simpatia, de forças opostas umas às outras, de visões diferentes das coisas, mas vínculos de fraternidade em Cristo, em todos os níveis. Se não fosse assim, acho que, sob o chapéu da “sinodalidade”, poderíamos colocar muitas coisas que não têm nada a ver com a natureza da Igreja.
Quando o senhor fala de “fácil retórica do momento”, a que está se referindo?
Estou pensando justamente no fato de que hoje todos falam de “sinodalidade”, mas às vezes, por trás da sinodalidade, são projetadas realidades que realmente não têm nada a ver com a sinodalidade da Igreja. Em um contexto como o atual da civilização ocidental, no qual todos somos fascinados pelos direitos individuais, muito menos pelos direitos sociais, pode haver o perigo, por exemplo, de que uma mentalidade que não tem nada a ver com a sinodalidade da Igreja seja passada como “sinodalidade”.
“Corrigir os defeitos dos membros da Igreja” foi uma das principais preocupações expressas na carta. Em sua opinião, atualmente, quais são os defeitos mais difundidos e resistentes?
Eu diria que os defeitos são os mesmos de sempre, mas, ao mesmo tempo, eles assumem características ligadas à época em que vivemos hoje. Em um comentário sobre um texto do Vaticano II sobre missão, o teólogo Yves Marie-Joseph Congar disse que sempre há algo não-evangélico a ser convertido em nós. Parece útil relembrar essa consideração aqui. Talvez na raiz das falhas dos membros da Igreja esteja um processo de conversão que não é levado a termo. Se eu tivesse que dizer como isso se manifesta hoje, eu diria, olhando particularmente para o Ocidente, que a falha na conversão se expressa em considerar a fé como garantida em uma época em que a fé não é mais considerada como garantida, em não levar suficientemente a sério a necessidade de aprofundamento e elaboração espiritual por parte dos crentes. Ela se manifesta na falta de confiança, às vezes, de que o Espírito de Cristo continua a habitar a Igreja de hoje: o tempo presente não é necessariamente um tempo de decadência. E tem mais: ela se manifesta ao assumir a mentalidade do mundo comunicativo de hoje, mesmo dentro da Igreja, um mundo comunicativo que não é tanto dialógico, não é tanto dialético, mas muitas vezes baseado em denegrir uns aos outros. A esse respeito, a lição de Paulo VI poderia ser reatualizada no mundo de hoje.
O que Paulo VI sublinha em várias ocasiões na encíclica, no que diz respeito à relação da Igreja com o mundo, é o “compromisso muito laborioso” ao qual a própria Igreja é chamada para encontrar um equilíbrio entre o perigo de se perder na adaptação aos costumes e ao pensamento do ambiente temporal e o risco de se fechar em uma espécie de confinamento sem diálogo por medo de se tornar um mimetismo inútil. Em suma, distinção, mas não separação: o que isso significa hoje?
Parece-me que isso significa não se adaptar a uma certa mentalidade contemporânea, segundo a qual as identidades são necessariamente opostas umas às outras. Certamente é verdade que sublinhar as identidades pode levar a situações de conflito e à alienação de uma em relação à outra, mas quando isso acontece, devemos nos perguntar se o tema das identidades foi bem elaborado e se não estamos diante de uma paródia das verdadeiras identidades. A verdadeira identidade é dialógica por sua própria natureza. Ao mesmo tempo, para que haja um diálogo, deve haver uma identidade. Parece-me que na Igreja devemos recuperar essa consciência: temos uma identidade que não deriva de nós mesmos, mas do Evangelho de Cristo que somos chamados a testemunhar no mundo. Isso não nos opõe ao mundo, pelo contrário, faz com que nos sintamos a serviço da humanidade e estruturalmente em relação com todas as mulheres e homens com quem vivemos.
O apostolado, escreveu Paulo VI na Ecclesiam suam, não pode se comprometer com um compromisso ambíguo em relação aos princípios de pensamento e de ação que devem qualificar nossa profissão cristã. Atualmente, onde o senhor encontra essas ambiguidades na Igreja?
Como eu estava dizendo, chegamos um pouco tarde no diálogo com os tempos modernos. Nesse sentido, a encíclica de Paulo VI foi realmente pioneira, fez muito bem à Igreja de seu tempo, porque a colocou de volta no caminho do diálogo com a modernidade, dentro da qual proclamar o Evangelho. Agora, parece-me que esse atraso possa se resolver hoje em um sutil e inconsciente sentimento de culpa que nos deixa acríticos em relação a certas dimensões da modernidade, que podem permanecer antievangélicas. Há muitos aspectos belíssimos da modernidade que têm o sabor e o gosto do Evangelho. Por exemplo, a cultura dos direitos, o respeito pelas pessoas, um sentido mais elevado de justiça, a igual dignidade de todas as pessoas, o sentido de sujeito, de liberdade… Acredito que esses sejam valores que a modernidade nos devolveu, mas não são tão estranhos à beleza do Evangelho. Entretanto, também pode haver distorções da modernidade que a Igreja deve observar sempre com discernimento evangélico. Acho, por exemplo, que hoje é dado como certo que a racionalidade seja apenas a tecno-científica, que reduz o mundo a um funcionalismo sufocante.
Estão se espalhando tendências muito em voga que levam, muitas vezes até mesmo os cristãos, a buscar cada vez mais formas de espiritualidade desvinculadas da frequência à Igreja, de contato com o transcendente ignorando as estruturas eclesiais. Como esses fenômenos podem ser explicados?
Por um lado, é preciso sempre questionar o conteúdo que é dado à busca da transcendência e da espiritualidade. No Cristianismo, a transcendência é estar aberto a Cristo, que é o Filho de Deus e, ao mesmo tempo, nosso irmão; portanto, o encontro com Deus passa necessariamente pelo encontro com o irmão. O encontro com Deus, portanto, e a experiência de Igreja não podem ser duas coisas antitéticas. Quando pensamos que podemos ignorar a Igreja para um encontro mais imediato com Deus, a grande pergunta que devemos nos fazer é: qual é a face de Deus que achamos que devemos encontrar? Por outro lado, e aqui reside toda a atualidade do Vaticano II, é verdade que a Igreja deve se perceber como um mistério, que ela é o lugar da presença de Deus, o instrumento do encontro de Cristo com as mulheres e com os homens. Aqui há realmente um exame de consciência a ser feito: quanto nossas estruturas e nossas formas de realizar a comunidade cristã, as dioceses, as paróquias, levam a experimentar o encontro com Cristo como o fulcro de tudo? Quanto, ao contrário, são os lugares onde as pessoas fazem coisas, se reúnem para atender a uma necessidade, mas não em torno à centralidade que é Cristo? Deve ser motivo de reflexão o fato de tantas pessoas hoje em dia buscarem respostas para seu desejo de espiritualidade fora da Igreja: muitas vezes elas não são colocadas em condição de perceber que a Igreja possui uma imensa riqueza espiritual.
Paulo VI fala de paz na Ecclesiam suam. Diz que deve ser “livre e honesta”: não pode deixar de proclamar, como crime e como ruína, a guerra de agressão, de conquista e de predomínio. Um esclarecimento muito apropriado nos dias de hoje…
Eu diria que sim. Nos diz que nunca nos livramos de enfrentar agressões e violências. Nos diz que a busca pela paz não pode deixar de ser também a busca pela justiça. Assim como nos diz que a busca pela paz também deve encontrar caminhos de reconciliação e de misericórdia, considerando que as guerras deixam um legado de feridas atrozes. Parece-me que essa mensagem não afeta apenas o mundo-macro, mas também nossos pequenos mundos. Por fim, é um convite: a guerra sempre começa no coração dos homens, há fúrias, hostilidades, ódios que podem ser cultivados mesmo não pertencendo a países em guerra. Fico impressionado com o fato de nossas sociedades, embora formalmente em paz, serem assoladas por tantas formas de violência sutil ou não tão sutil. A busca pela paz não pode ser um slogan, mas um compromisso de todos aqueles que realmente a desejam.
A primado de Pedro não é para ser uma supremacia de orgulho espiritual e domínio humano, lemos novamente na encíclica, mas um primado de serviço. O Papa Francisco nos demonstra isso em seu pontificado… Como considera os desafios ecumênicos também relacionados ao tema urgente da paz?
É uma questão particularmente atual, porque a divisão das Igrejas não ajuda a entender que a humanidade é chamada a caminhar no sinal da unidade e da fraternidade. Se as Igrejas já estão divididas entre si, elas perdem o sinal de comunhão que são chamadas a ser. Hoje, mais do que nunca, o caminho ecumênico deve ser sentido como vital e urgente se a Igreja quiser dar sua contribuição evangélica necessária para a unidade da humanidade e para a paz.