Leão XIV “vai desconstruir todas as imagens de confrontação que havia entre progressistas e conservadores”

15/maio/2025


A análise do padre Jorge Cunha, professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa e sacerdote da diocese do Porto.

Rui Saraiva – Portugal

Sucedem-se em Portugal comentários e análises sobre o novo Papa. Na entrevista conjunta da Rádio Renascença e da Agência Ecclesia, o padre Jorge Cunha, professor catedrático da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, analisa o perfil do cardeal Robert Francis Prevost como novo Papa Leão XIV. Uma entrevista conduzida por Henrique Cunha da Rádio Renascença e Octávio Carmo da Agência Ecclesia.

P: Antes do Conclave, refletia-se sobre se o novo Papa seria progressista ou conservador. Que imagens conseguiu passar o cardeal Prevost, eleito como Papa, nestes primeiros momentos do seu pontificado? Viu esta escolha como uma surpresa ou não? 

R: Sim, eu estava à espera de uma solução de continuidade, é verdade, e, portanto, o Papa Leão é uma escolha sábia do Conclave, porque é um homem que nos aparece com um perfil muito adequado, é um homem de certo modo desconstruído. Eu acho que ele vai desconstruir todas as imagens de confrontação que havia entre progressistas e conservadores, ele aparece como alguém que está bastante preocupado com essencial, sem gordura, e até sem tradição, sem construção intelectual, portanto, ele não aparece como um grande teólogo.

P: E para fazer pontes na Igreja e fora dela?

R: Sim, vem do sítio certo, vem da América do Norte, vem dos Estados Unidos, mas não é um americano típico, é um americano que conhece o resto do mundo ao contrário do que costuma ser na América. É um Papa que conhece a América do Sul, que é de uma ordem religiosa que inventou a interioridade no mundo, e, portanto, ele consegue conciliar todos esses extremos. E o facto de ser tipicamente americano, faz sobressair o seu pragmatismo e empirismo. Ele veio para simplificar, é o que me pareceu.

P: Abordou já uma questão que nós teríamos preparado, que é a questão da continuidade, é aquela pergunta que toda a gente faz, mas pergunto: é uma espécie de uma terceira via, ou acredita realmente que vai mais numa linha mais próxima de Francisco? 

R: Eu não percebi que ele se vá posicionar contra Francisco, de maneira nenhuma. Calculo que tenha outra imagem. O Francisco era o impulso, era um pouco até provocador, digamos assim, para fazer andar as coisas. Eu acredito que este Papa vai prever as dificuldades, que com toda a sua capacidade de conhecimento do mundo vai prever e vai evitar os obstáculos, e pareceu-me isso, pareceu-me que tem uma agilidade para isso, até do ponto de vista físico. É ágil. Ele é um homem que vem do mundo livre. As pessoas que já foram à América têm a noção de que a América é um espaço infinito, um espaço de liberdade, um espaço em que a gente pode desenvolver as suas aptidões, as suas capacidades. Eu acho que foi uma ocasião providencial de escolher um (Papa) dos Estados Unidos, que pode chamar a atenção para outros aspetos – aquele país tem uma grande missão no nosso mundo de criar a paz, uma grande missão de orientar e, portanto, eu calculo que ele vai ter todas essas virtualidades. A Igreja tem umas reservas inesgotáveis de criatividade, é a ideia que fica, não é? Quando tudo parece perdido, aparece uma pessoa imprevista, imprevisível, que nos dá a ideia de como podemos continuar a viver, de como a Igreja continua, de que uma Igreja é um sinal à superfície da história e que leva para a frente a tarefa de manter o Evangelho vivo, de dar à nossa realidade o contributo do Cristo e da sua salvação. Portanto, eu creio que ele vai desencadear uma grande empatia, vai descomprimir aquilo que estava comprimido também, vai diluir as confrontações extremas que havia. O nome dele deve ter aparecido, por um lado, aos cardeais de Francisco como um nome evidente…

P: A pergunta ia nesse sentido, quando falava em terceira via era para sublinhar isso que está a dizer. Houve tensões que se foram criando que agora talvez, na figura deste novo Papa, se possam descomprimir….

R: Eu calculo que sim, que isso vai ter o efeito benéfico. Ele aparece como alguém ágil e isso é muito bom, isso é muito bom para o nosso futuro e para o futuro da Igreja.

P: A experiência missionária e a proveniência geográfica têm sido fatores muito sublinhados para a leitura desta escolha dos cardeais. A Igreja Católica deixou mesmo de ser eurocêntrica? 

R: É bem possível que sim, é bem possível. De facto, o nosso cristianismo tem-se deslocado à volta do mundo segundo o movimento do Sol e, portanto, o continente americano é atualmente o lugar do catolicismo e é o lugar da fé. Tanto nos Estados Unidos como na América do Sul. E, portanto, a velha Europa, com as suas complicações, com as suas guerras, também com a sua experiência.  A fé na Europa é a fé mais elaborada, mais estruturada, mais pensada, aqui é onde o cristianismo deu melhores efeitos, não tenho dúvida disso. E isso é um problema profundo que os outros continentes ainda vão passar.  A Ásia não passou, a África não passou, pelo movimento, por exemplo, da laicidade, pela construção da convivência cívica plural. A América passou, porque foram os europeus que foram para lá.

P: Mas até nesse sentido, pergunto se pensa que isso pode influenciar as intervenções do Papa Leão XIV. Algo que de alguma forma já se viu nas suas mensagens para o interior da Igreja, na primeira Missa com a questão do que ele fala de ateísmo prático e depois também com os apelos à paz a nível global. Estas são intervenções que podem ir nesse sentido, de perceber que os problemas do coração da Igreja são de todos e também os europeus estão no coração do Papa? 

R: Creio que sim, não há dúvida que não pode deixar de ser assim. Ele é um homem de formação europeia, um homem descendente de europeus emigrados para a América, mais uma vez, um homem que conhece bem o seu próprio país e que conhece bem a América do Sul e que trabalhou na Europa, formou-se na Europa. Eu creio que ele tem todas as condições para dar esse seu colorido, o seu colorido.  Eu calculo que ele não vai ser um impulsivo como foi o Papa Francisco, que partia a direito, que era imprevisível, que era apocalítico. Vai ser muito mais pragmático, vai ser um homem da observação da realidade, vai ser um homem da escolha certa, um homem da escolha menos polémica, vai ser um homem da desmontagem dos problemas complicados que nós temos, tanto em moral como na vida internacional.  Eu espero que ele leve a América a dar o seu contributo para a pacificação do mundo e, portanto, convença o presidente e os outros titulares de que eles têm um papel e que não podem alhear-se, já que assumiram responsabilidades; não podem alhear-se do resto do mundo e, portanto, têm de entrar no jogo democrático internacional e desempenhar a sua missão de ser focos de estabilização do mundo e não propriamente de focos de incêndio do mundo.

P: Queria confrontá-lo com o facto de o cardeal Prevost ter participado no processo sinodal e ter feito parte de dois grupos de trabalho sobre os temas que continuam em debate até este verão. Esta é uma dinâmica que não admite recuos? 

R: Sim, eu acho que o processo sinodal é um meio de dar um espírito àquilo que já está legislado, dar um espírito novo e de melhorar as formas de participação na Igreja e na sociedade. Eu creio que a sinodalidade é uma forma de dar corpo e de dar espírito, de dar interioridade à democracia e à participação. É assim que eu a entendo e, portanto, entendo-a não como uma negação da democracia, mas como um aprofundamento da democracia. A democracia é o nome que nós damos à forma justa de ordenar a nossa vida comum. E, portanto, a sinodalidade não se opõe à democracia, mas aprofunda a democracia, desenvolve a democracia, melhora a democracia. Não tenho dúvidas de que isso pode vir a ser uma forma de dar voz a todos os contributos, de pôr no terreno as decisões que nós precisamos para que a Igreja seja relevante e para que a Igreja seja eficaz na sua comunicação do Evangelho. 

P: Olhando para as ameaças a essa democracia a nível geopolítico, as primeiras reações foram no sentido de insistir muito na nacionalidade do Papa, norte-americano que possa abrir perspetivas de diálogo com novas potências, num momento que é de várias crises. Mas do que sabemos, do cardeal Prevost, agora Leão XIV, é que teve posições muito contrastantes em relação, por exemplo, à administração Trump sobre temas como pobres, migrações ou racismo. Vai ser uma relação difícil?

R: Quer dizer, eu não imagino que seja uma relação difícil. Eu calculo que o Papa vai ser capaz de lembrar aos Estados Unidos e à sua administração que tem reservas de institucionalização muito sólidas. Eu não tenho medo da democracia na América, para dizer a verdade. Posso vir a ser contraditado, mas é um país com instituições muito fortes e eu espero muito que a acentuação que tem vindo a ser desenvolvida seja apenas propedêutica. Eu calculo que o Papa vai ser um equilíbrio, vai equilibrar e vai lembrar à América que ela foi o laboratório da democracia para lá da intolerância europeia, foi o primeiro sítio onde se pensou a tolerância, em que se pensou a convivência multirracial, multiétnica, multirreligiosa.

O padre Jorge Cunha é professor catedrático da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa e sacerdote da diocese do Porto.

Laudetur Iesus Christus

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