“A narrativa pintada no sertão de Taperoá carrega como um dos elementos principais do catolicismo: a fé do povo simples, sublinha-se o tesouro da religiosidade popular. Essa fé é aquela que dá esperança, força e capacidade de reinventar a vida. Em um mundo de constantes ameaças à vida, o imperioso é manter a esperança que faz com que muitos não desistam, que apelem sempre a um possível caminho e, não tendo mais soluções, apele para a “Compadecida”. “
Por frei Vitor Vinicios da Silva*
É com a esperança no coração que nosso povo brasileiro recebeu de presente o “Auto da Compadecida 2” no dia 25 de dezembro de 2024. Essa continuidade do sucesso apresentado em 2000, narra as idas e vindas dos “arretados” João Grilo e Chicó que retornam aos palcos para contar o reencontro depois de 25 anos separados. No chão de Taperoá, sertão da Paraíba, temos o retrato da realidade brasileira, uma realidade desigual, marcada pela fome, pela sede e pela distância cada vez maior entre pobres e ricos. Por outro lado, são testemunhas das mudanças de um mundo em transformação, apresentam temas sensíveis à nossa realidade, como a influência midiática (rádio), política e a fé. Em síntese, apontam questões que tocam o chão da vida real e nos fazem pensar na vida do brasileiro.
Frente às telas do Brasil, a arte nos leva à consciência do equilíbrio entre o ser humano e o mundo. Como afirmou o pintor Mondrian, embora podemos colocar ressalvas, “A arte desaparecerá na medida em que a vida adquirir mais equilíbrio”. Essa afirmação coloca a arte no sentido de estimular em nós aquilo que está ausente, ou seja, nos impulsiona a buscar aquilo que falta para que haja o equilíbrio. Entretanto, é claro que essa arte não é apenas um substituto da vida, mas algo que “[…] estimula a avidez da inteligência e instrui o povo no prazer de mudar a realidade” (FISCHER,2015, p.14). Nesse sentido, “O Auto da Compadecida 2” é uma história do povo e para o povo simples e trabalhador, é o estímulo para o brasileiro que labuta todos os dias em busca de pão e água para mudar o nosso país.
O filme recoloca no palco o povo pobre que luta a favor da vida, são aqueles que usam da expertise para viver a mínima dignidade. Retrata a vida fraturada de muitos que, embora na dor de não ter condições, usam da sabedoria popular para enganar a miséria, a dor e a falta. Embora haja um repertório imenso de temas, sublinharemos apenas o aspecto da religiosidade popular no intuito de contribuir com a mensagem tão profunda e necessária que essa arte traz.
A narrativa pintada no sertão de Taperoá carrega como um dos elementos principais do catolicismo: a fé do povo simples, sublinha-se o tesouro da religiosidade popular. Essa fé é aquela que dá esperança, força e capacidade de reinventar a vida. Em um mundo de constantes ameaças à vida, o imperioso é manter a esperança que faz com que muitos não desistam, que apelem sempre a um possível caminho e, não tendo mais soluções, apele para a “Compadecida”. Essa mãezinha é aquela que “[…] é bem próxima de nós, é gente como a gente”. Com isso, o filme nos aponta para algo que, talvez, os teólogos, presbíteros e a igreja institucional jamais tocará: a fé do povo simples, aquela que dá sentido e que não se condiciona somente aos momentos difíceis, mas também nos momentos de glória.
Olhando para essa dimensão da fé, podemos verificar as diversas facetas narradas no filme, como, por exemplo o julgamento de João Grilo que nos recorda que o bem e o mal existem dentro de cada um de nós, depende apenas da nossa escolha, ou a manipulação da fé em prol dos interesses privados. Todavia, a fé, nessa narrativa, é dada como propulsora da vida, nos levando a compreender a resiliência do povo em continuar sua luta. O filme nos ajuda a recordar a fé do brasileiro e da população latino-americana que não desiste de construir uma terra prometida, uma terra que tenha um pedaço de terra, pão e água para todos. Nesse sentido, João Grilo e Chicó nos falam da religiosidade popular que se volta para nossas raízes. Recorda-nos do nosso povo que foi costurado pelo encontro de culturas e que emergiram expressões de tantas formas e cores. Dentre elas, carregamos essa grandiosidade da religiosidade popular que se refere a um “conjunto de crenças, atitudes e expressões religiosas adotadas por um povo” (PUEBLA, 2004, n° 444). Assim, memoramos que a fé popular é uma expressão que nasce de uma reinterpretação feita pelo povo simples de um catolicismo implantado pela cruz e a espada na colônia Brasil.
Por outro lado, essa religiosidade popular nos acresce a memória da tradição oral, estabelecida por Chicó. É a mãe de muitos dos nossos costumes e o filme nos aponta os grandes contadores de histórias que demarcam a riqueza de nossa cultura e da manutenção de nossas tradições. Sinaliza as duas faces da vivência católica: “[…] de Portugal veio o cristianismo oficial do clero, da corte, da universidade, da nobreza, dos ‘homens bons’ e o cristianismo popular da tradição oral, dos pobres, da área rural, em especial das vilas do norte de Portugal” (POEL, 2013, p. 890). Em síntese, somos frutos de um cristianismo que se misturou com as influências indígenas e africanas, somos povos de várias cores e faces.
Diante disso, essa dimensão explorada no filme nos leva a muitas indagações: o que essas mensagens têm a nos dizer? O que é a fé? Qual a importância disso para nossas vidas? Talvez possamos retirar uma mensagem de resiliência e esperança, que embora enfrentamos cada vez mais abismos sociais, devemos ir adiante. Há sempre caminhos para a humanidade, há sempre espaço para a expertise e a fé do povo simples que nos mostra sempre uma porta de alternativas. Embora sejamos nutridos por um mundo tecnológico, há espaço para a fé diante das perguntas que a ciência não nos responde. Somos convidados a perceber que teremos sempre os antagonismos humanos de um pobre feliz e um rico amargurado, de um ‘amarelo’ sagaz e um rico ignorante que nos ajuda a entender umas das perguntas capitais da humanidade: o que teremos que ter para a vida valer a pena? O bom da vida não está na materialidade do mundo, mas na potencialidade humana de ser gente. Dessa forma, sintetizamos que o filme nos passa uma mensagem profunda e significativa para a nossa vida, ou seja, que devemos ter um pouco de fé e um bom amigo que nos leva a fazer como João Grilo: devolver a fé ao povo que deixa de acreditar na ressurreição do humano.
*Graduado em Filosofia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino, graduando em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e Especialista em Ensino Religioso e Gestão Integradora pelo Instituto Pedagógico de Minas Gerais, IPEMIG.
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REFERÊNCIAS
CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO: Puebla Conclusões da Conferência de Puebla: evangelização no presente e no futuro da América Latina. 13. ed. São Paulo: Paulinas, 2004.
FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 9 ed. Rio de Janeiro: LTC, 2015.
POEL, Francisco Van der. Dicionário da religiosidade popular: cultura e religião no Brasil. Curitiba: Nossa Cultura, 2013
Fonte (Vatican News)
Estamos reproduzindo um artigo do site Vatican news.
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