Sílvia Monteiro: aplicar o Sínodo é “cuidar de pessoas concretas”



Partindo do seu contacto com doentes, a médica assinala a importância da Igreja “habitar as periferias” existenciais junto dos que mais sofrem. Afirma que “só o amor é que nos pode abrir caminho à esperança”, pois, “o segredo do amor é cuidar”. É o episódio 6 da iniciativa “No coração da esperança” da Rede Sinodal em Portugal.

Rui Saraiva – Portugal

A iniciativa “No coração da esperança” da Rede Sinodal em Portugal continua a produzir conteúdos sinodais e nesta fase de receção do Documento Final do Sínodo apresenta aqui o episódio 6 desta produção. É a segunda parte da entrevista com a médica Sílvia Monteiro.

P: Tendo em conta que na primeira fase do Sínodo foram constatadas algumas “doenças” na Igreja, como o clericalismo, por exemplo, que ajuda pode dar a comunicação médica para que a aplicação das conclusões do Sínodo possa ser, em certo sentido, terapêutica?

R: “Esta é uma pergunta difícil, mas vou aqui procurar estabelecer uma analogia entre as duas áreas. Bom, em medicina, quando se desenvolve evidência científica com os ensaios clínicos, periodicamente são elaboradas guidelines.

Ou seja, recomendações que todos nós, e isso é particularmente verdade em cardiologia, todos nós conhecemos bem, estudamos e depois temos que aplicar na nossa prática clínica, em cada organização e em cada doente que temos à frente. E de facto, há barreiras muito importantes na implementação. E esta é uma noção importante que queria deixar aqui. Nós podemos saber tudo, mas a implementação em cada caso clínico concreto é difícil, e existem barreiras importantes.

E por isso, qual é que eu acho que é a principal característica que todos temos que ter. Antes de mais, acreditar. Ou seja, eu tenho que acreditar que aquela estratégia que está ali naquele documento vai mudar o prognóstico do meu doente, porque se eu acreditar, vou tentar ultrapassar todas as barreiras.

Ora, para implementar o nosso documento sinodal é preciso, antes de mais, acreditar. Acreditar que esta é a nova forma de ser Igreja, que Deus nos está a conduzir para os nossos dias, de hoje. E, portanto, isto exige – para acreditar – exige uma conversão pessoal e comunitária. Só desta forma é que vamos ter a resiliência e a motivação necessária para ultrapassar as barreiras que, obviamente, vão ser muitas.

Depois, outra coisa importante, que vem um pouco desta experiência da prática clínica: se não podemos chegar a todo o lado, temos que definir prioridades. Focar naquilo que é essencial.

Depois, partilhar boas práticas. Não precisamos todos de inventar a roda. O que já está a ser bem feito por outras comunidades, vamos aplicar também nas nossas. Naturalmente que a Igreja precisa muito de otimizar a sua organização, avançar para a inovação. Porque não? Contudo, o essencial vai ser mesmo caminharmos todos juntos e deixarmo-nos iluminar pelo Espírito Santo.

Falou em comunicação médica e, de facto, a Igreja e a medicina têm em comum, no fundo, promover a dignidade da vida humana. Isto é, cuidar de pessoas concretas, com um rosto, com uma história, com uma família, como nós. E eu penso que esta tem que ser a centralidade da nossa ação. Cuidar da pessoa humana. E, enquanto médica, permita-me que diga isto. Parece-me que o cuidar da pessoa é, sem dúvida, uma experiência de humanização brutal, que partilho enquanto médica, enquanto mulher de Igreja, que nos ensina qual é que é o nosso propósito de vida e que nos permite efetivamente cumprir plenamente a nossa missão. Quando falamos de comunicar, e comunicar com pessoas, doentes ou não, é muito importante cuidarmos da nossa linguagem. E a linguagem deve ser sempre muito clara, aberta, muito colaborativa, muito próxima, sempre num ambiente de diálogo e partilha.

Lembro sempre, na mensagem para as Comunicações Sociais – penso que no ano de 2023 -, o nosso querido Papa Francisco convidava os jornalistas, mas no fundo, a todos nós, a falarmos com o coração, e a testemunhar a verdade no amor. E este é o grande segredo da comunicação interpessoal. É muito importante, exigente, porque exige-nos um coração purificado. Para falarmos com o coração, ele tem que estar purificado. E, no fundo, obriga-nos a uma entrega total. Somos pessoas por inteiro à frente da pessoa, do meu doente, que tenho à frente, e em que entregamos tudo. E, portanto, inteiramente todo o nosso ser. E, portanto, trazer também esta forma de comunicar para a Igreja parece muito interessante neste contexto. Sobretudo numa altura em que claramente a sociedade tem uma postura muito indiferente à mensagem de Cristo. Parece-me que a Igreja perdeu a capacidade de tocar a vida concreta das pessoas. E, por isso, acho que todos, em conjunto, precisamos de melhorar a nossa comunicação.

Para isso, precisamos de novas linguagens, novas estratégias. Precisamos de novos testemunhos de vida, muito inseridos no mundo de hoje, para podermos então, no fundo, comunicar de uma forma apaixonada as maravilhas do amor de Deus para nós. Penso que a nossa comunicação tem que, de alguma forma, tocar diretamente a vida concreta das pessoas. Não podemos falar para o abstrato. É fundamental ir ao concreto da vida. Claro que estamos em tempos muito difíceis, em tempos difíceis dentro da Igreja, no mundo. E às vezes apetece desanimar e parar. Acho que não é esse o tempo. E queria deixar aqui uma mensagem positiva. Acho que este é o tempo em que precisamos de sonhar, sonhar na construção desta nova forma de ser Igreja. Acredito que este é o tempo de percebermos que só o amor é que nos pode abrir caminho à esperança. Aquela esperança que nos abre caminhos de transcendência e, sobretudo, que nos dá a coragem para sairmos de nós próprios, para assumirmos a vida como um dom e para entregar esta vida por inteiro ao serviço da humanidade.

Já a terminar, queria deixar aqui uma última ideia. Que falámos na necessidade de prioridades. E eu penso que nesta altura, e nesta fase de implementação, em que são necessárias muitas, muitas coisas ao mesmo tempo, eu acho que é muito importante que cada comunidade pare para pensar quais são as suas prioridades. E a pergunta que tem que responder é: Onde é que nós não podemos mesmo falhar? Nas nossas ações, qual é a nossa prioridade? Na minha perspetiva, parece-me que a Igreja deve ir ao encontro, e deve habitar, sobretudo, as periferias.

E permita-me que fale aqui da pessoa doente, que me é muito cara. Esta tem que ser uma prioridade para a Igreja: acompanhar a pessoa doente, particularmente a pessoa em cuidados de fim de vida, acompanhar as suas famílias. Cuidar da pastoral do luto que tem tido muito pouco impacto na nossa Igreja. Penso que não há fragilidade maior que esta. É aqui que a Igreja tem que estar. É fundamental acompanhar e apoiar todas as formas de pobreza. Enfim, os migrantes, as vítimas de abusos sexuais. Eu penso que aqui é a área em que não podemos falhar. Não vale a pena estarmos a pensar em grandes eventos, e mais eventos, e muitas pessoas, se esquecemos estas periferias. Na minha perspetiva, começamos por aqui. Se depois temos tempo, então vamos avançando noutras áreas. Mas penso que este circuito tem estado um pouco invertido.

E depois, neste mundo, eu penso que todos nós, cada um de nós, povo de Deus, tem de facto que se preocupar, que se deixar ferir interiormente para ir ao encontro do outro e para sujar as mãos e fazer alguma coisa. Porque eu acho que o grande desafio dos nossos dias é mesmo cuidar de cada pessoa em concreto. Temos que deixar o abstrato, as ilações. O estarmos a falar não sabemos bem para quem. Não. A nossa ação tem que ser para pessoas em concreto, colocar sempre a pessoa no centro. E, no fundo, unirmo-nos em torno deste bem comum. Porque se há coisa que eu tenho aprendido até nos últimos tempos, por experiência pessoal, é que realmente o segredo da vida é amar. E o segredo do amor é cuidar.

A terminar, e numa altura em que rezamos pelo nosso querido Papa Francisco, que atravessa uma fase tão crítica, queria lançar aqui o desafio. Tenhamos a coragem de colaborar com este legado, este grande legado que o Papa Francisco nos deixa de construir uma Igreja inclusiva, missionária, uma Igreja em saída, de portas abertas, que não tem medo de percorrer as estradas do mundo, as periferias da humanidade, sempre centrados no verdadeiro espírito do Evangelho. Uma Igreja sinodal em que caminhamos todos juntos, iluminados pelo Espírito Santo, e guiados apenas pela vontade de Deus.

Sílvia Monteiro é médica cardiologista em Coimbra e pertence à Rede Sinodal em Portugal colaborando na iniciativa “No coração da esperança”, uma parceria com Diário do Minho, Voz Portucalense, Correio do Vouga, Correio de Coimbra, A Guarda, 7Margens, Rede Mundial de Oração do Papa e Folha do Domingo.

Laudetur Iesus Christus

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Fonte (Vatican News)

Estamos reproduzindo um artigo do site Vatican news.

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