Uma nova fronteira tecnológica que desafia a fé e o luto
A ascensão de aplicativos de inteligência artificial que prometem recriar digitalmente entes queridos falecidos tem gerado um intenso debate ético e espiritual. Utilizando vídeos e áudios antigos, essa tecnologia permite criar "avatares" com os quais familiares podem interagir, levantando profundas questões sobre a natureza da vida, da morte e da memória na perspectiva cristã.
A promessa é sedutora: permitir que aqueles que partiram "façam parte do nosso futuro". Vídeos de divulgação mostram famílias interagindo com projeções digitais de avós falecidas, anos após sua morte. No entanto, especialistas católicos alertam para um sério “perigo espiritual” e para o risco de que essa tecnologia atrapalhe, em vez de ajudar, o processo natural e necessário do luto.
A interferência no processo do luto
Teólogos e especialistas em bioética apontam que, embora esses avatares possam evocar aspectos de nossos entes queridos, eles são incapazes de capturar a riqueza completa do ser humano, que é corpo e alma. Existe o risco de que essas réplicas digitais distorçam o legado da pessoa falecida, fabricando conversas e interações que nunca existiram e que estão fora do controle de quem partiu.
A Igreja Católica há muito ensina sobre o poder redentor do luto. O Papa Francisco já se referiu ao luto como um “caminho amargo”, mas que pode “abrir os olhos para a vida e para o valor sagrado e insubstituível de cada pessoa”. Tentar contornar essa dor com uma simulação digital pode impedir um amadurecimento espiritual fundamental, mantendo a pessoa presa a uma ilusão em vez de abraçar a esperança da Ressurreição.
Uma nova forma de "magia"?
Um professor associado do Instituto para a Vida da Igreja da Universidade de Notre Dame adverte que a tecnologia não é neutra; ela molda profundamente nossa percepção da realidade. "Se alguém que já não existe em forma humana, corpo e alma, pode ser 'ressuscitado' a partir de um arquivo de seus rastros digitais, com quem ou com o que estamos realmente interagindo?", questiona.
Essa nova "magia" tecnológica, segundo ele, é desprovida da ordem hierárquica e espiritual da criação. O Catecismo da Igreja Católica condena explicitamente todas as formas de "evocação dos mortos" (CIC 2116-2117), alertando que tais práticas escondem um desejo de poder sobre o tempo e a história, e desviam da confiança em Deus.
Uma conselheira católica com décadas de experiência no acompanhamento de enlutados reconhece a profunda necessidade humana de se conectar com quem partiu. "É comum que as pessoas guardem a voz de um familiar na secretária eletrônica ou revejam vídeos para senti-los por perto", explica. Esse desejo se relaciona com a nossa fé na Comunhão dos Santos.
No entanto, ela adverte que a dificuldade surge quando as pessoas ficam presas na negação. Em seu desespero, alguns podem recorrer a meios que a Igreja proíbe, como médiuns. A preocupação é que os avatares de IA funcionem de maneira semelhante, oferecendo um consolo artificial que impede a verdadeira cura e a aceitação da vontade de Deus.
A resposta da fé não está em um banco de dados, mas na oração e na esperança da vida eterna. Os católicos honram e se conectam com seus entes queridos por meio de memoriais litúrgicos e da oração, confiando que seu destino eterno repousa em Deus, e não em um algoritmo.