
As Relíquias da Manjedoura de Belém
As Relíquias da Manjedoura de Belém: Um Estudo Arqueológico, Histórico e Teológico da Sacra Culla A história do cristianismo é intrinsecamente ligada à materialidade dos
A história do cristianismo é intrinsecamente ligada à materialidade dos objetos que testemunharam a vida de Jesus de Nazaré. Entre os artefatos mais significativos e venerados ao longo dos séculos, encontram-se os fragmentos de madeira da manjedoura que, segundo a tradição cristã, serviu como o primeiro berço para o Menino Jesus em Belém. Este objeto, conhecido como a Sacra Culla (o Santo Berço), está atualmente preservado na Basílica Papal de Santa Maria Maior, em Roma, e representa um dos elos mais tangíveis entre a história da salvação e a arqueologia do Oriente Próximo.1
A trajetória dessa relíquia, desde as grutas da Judeia até o coração da Cristandade Ocidental, é um relato complexo que envolve diplomacia eclesiástica, fé profunda e, nas últimas décadas, escrutínio científico rigoroso. A importância de Santa Maria Maior como a "Belém do Ocidente" não é meramente um título honorífico, mas uma designação litúrgica e arquitetônica consolidada pela presença dessas tábuas de madeira, que transformaram a basílica no centro das celebrações natalinas romanas por mais de mil e trezentos anos.1
O traslado da manjedoura para Roma ocorreu em um dos períodos mais conturbados da história do Mediterrâneo: o século VII. Naquela época, a expansão do domínio islâmico sobre a Terra Santa gerou uma onda de preocupação entre as lideranças cristãs quanto à preservação dos locais santos e de seus artefatos.7 Foi nesse contexto que o Patriarca Santo Sofrônio I de Jerusalém decidiu enviar os restos do cunabulum (o berço) ao Papa Teodoro I (642-649).9
A escolha do Papa Teodoro I como destinatário não foi aleatória. Teodoro era natural de Jerusalém, filho de um bispo, e mantinha laços profundos com as comunidades cristãs do Levante.1 Ao receber a relíquia, o pontífice não apenas garantiu sua segurança, mas também elevou o status da Basílica de Santa Maria Maior, que passou a ser conhecida oficialmente como Sancta Maria ad Praesepem.1
Antes de sua chegada a Roma, a veneração da manjedoura na Palestina já estava bem estabelecida. A tradição atribui a identificação inicial de muitos desses locais e objetos à imperatriz Santa Helena, mãe de Constantino, que viajou à Terra Santa no século IV.8 Naquela época, Belém já era um local de peregrinação, e a gruta da Natividade era visitada por fiéis que buscavam conectar-se fisicamente com o mistério da Encarnação. Relatos indicam que cinco hastes de madeira, que fariam parte da estrutura original da manjedoura, foram isoladas e preservadas como objetos sagrados desde o período constantiniano.8
| Período | Localização | Evento Principal | Significância |
| Século IV | Belém, Judeia | Identificação por Santa Helena | Início da preservação formal do objeto |
| 642-649 d.C. | Jerusalém/Roma | Translação por Santo Sofrônio | Proteção da relíquia contra instabilidade política |
| Século VII | Roma | Epíteto 'ad Praesepem' | Santa Maria Maior torna-se a Belém do Ocidente |
| 1223 d.C. | Greccio, Itália | Primeiro Presépio de São Francisco | Popularização da devoção à manjedoura |
| 1802 d.C. | Roma | Criação do Relicário de Valadier | Modernização da exposição da relíquia |
| 2019 d.C. | Roma/Belém | Devolução de fragmento pelo Papa Francisco | Restauração do vínculo físico com Belém |
A Sacra Culla é composta por cinco tábuas estreitas de madeira, que tradicionalmente se acredita serem parte da estrutura que sustentava um cocho de alimentação animal.1 A identificação da espécie de madeira é um fator crucial para validar a proveniência geográfica da relíquia. Estudos botânicos confirmaram que as tábuas são de madeira de sicômoro (Ficus sycomorus), uma árvore que era abundante na região da Palestina e do Egito durante o período do Império Romano.1
Diferente do sicômoro americano ou europeu, o Ficus sycomorus possui características celulares específicas que o tornam resistente e adequado para a construção de mobiliário rústico e utilitários agrícolas no Oriente Próximo.14 A presença deste material em Roma é, por si só, um forte indício de sua origem levantina, uma vez que o sicômoro não é uma espécie nativa da Península Itálica e não era comumente importado para uso em construções simples ou utensílios de alimentação animal.1
Embora a imagem popular de uma manjedoura de madeira seja comum na arte ocidental, é importante notar que, no contexto do primeiro século na Judeia, as manjedouras eram frequentemente feitas de calcário ou barro, aproveitando a topografia das cavernas usadas como estábulos.9 No entanto, as tábuas preservadas em Roma teriam servido como o suporte ou a moldura para o receptáculo principal de comida.9 A análise física mostra que as peças são estreitas e mostram sinais de desgaste compatíveis com o uso funcional e a antiguidade extrema.14
A verificação da idade das relíquias é um dos campos mais ativos da arqueologia sacra contemporânea. Para a Sacra Culla, estudos científicos recentes buscaram determinar se a madeira é compatível com o século I d.C..1 Os resultados indicaram que os fragmentos de sicômoro datam do início da era cristã, reforçando a tradição de que poderiam de fato ter existido no tempo do nascimento de Jesus.4
No entanto, a interpretação desses dados requer uma compreensão profunda da física do radiocarbono ($^{14}C$). A técnica de espectrometria de massa por acelerador (AMS) permite medir com precisão a quantidade de isótopos de carbono restantes em uma amostra orgânica.18 A fórmula básica para o decaimento radioativo é expressa como:
Onde:
Um desafio significativo na datação de objetos de madeira é o "Efeito da Madeira Antiga" (Old Wood Problem). O radiocarbono fornece a data em que o anel de crescimento da árvore cessou de trocar carbono com a atmosfera.18 Se uma manjedoura foi construída utilizando o cerne (parte interna) de uma árvore centenária, a datação por $^{14}C$ indicará o ano em que o anel central cresceu, e não o ano em que a árvore foi cortada ou o objeto fabricado.18 Portanto, para artefatos do século I, é possível que a datação aponte para um período anterior, o que ainda mantém a compatibilidade histórica do objeto como um item disponível e em uso no tempo de Cristo.3
Para abrigar uma relíquia de tal magnitude, a Igreja Romana investiu em cenários arquitetônicos que refletissem o mistério da Encarnação. Sob o pontificado de Pio IX (1846-1878), o arquiteto Virginio Vespignani realizou a Confessio (1861-1864), localizada diretamente em frente ao Altar Papal na Basílica de Santa Maria Maior.1
Vespignani concebeu a Confessio como uma descida simbólica à gruta de Belém. O uso de materiais nobres foi planejado para contrastar com a humildade da madeira sagrada. Estima-se que cerca de 70 tipos diferentes de mármores preciosos foram utilizados na decoração deste espaço, muitos deles provenientes de escavações arqueológicas contemporâneas em Roma e no porto antigo de Óstia.1 Essa escolha de materiais não foi apenas estética, mas teológica: o reaproveitamento de pedras da Roma pagã para adornar o berço de Cristo simbolizava o triunfo do cristianismo sobre o antigo império.3
As tábuas de madeira não estão expostas livremente, mas protegidas por um magnífico relicário de cristal de rocha e prata, projetado pelo famoso arquiteto neoclássico Giuseppe Valadier em 1802.1 Valadier moldou o relicário no formato de um berço, sustentado por anjos de prata e decorado com relevos que narram a Natividade e a Adoração dos Magos.3 O uso do cristal de rocha permite que os fiéis vejam as fibras da madeira sem expô-las ao ar atmosférico ou ao toque, fatores que acelerariam a oxidação e a degradação celular.3
A presença da Sacra Culla transformou Santa Maria Maior no epicentro do Natal em Roma. A tradição da Missa da Noite de Natal, celebrada pelo Papa nesta basílica, remonta a séculos de prática litúrgica contínua.2 A basílica foi projetada para ser uma réplica espiritual da Terra Santa, permitindo que os romanos participassem do mistério do nascimento de Jesus sem a necessidade de uma viagem perigosa a Belém.1
Outro elemento que reforça a identidade natalina da basílica é a presença dos restos mortais de São Jerônimo.2 Jerônimo, o tradutor da Vulgata, passou a maior parte de sua vida em uma caverna adjacente à gruta da Natividade em Belém, dedicando-se ao estudo das escrituras. No século XIII, suas relíquias foram transferidas para Santa Maria Maior, consolidando o vínculo entre a tradução oficial da Bíblia e a relíquia física do berço de Cristo.2
Em 29 de novembro de 2019, o Papa Francisco realizou um ato histórico de diplomacia e fé ao doar um fragmento da manjedoura à Custódia da Terra Santa.7 Este fragmento, embora pequeno em dimensões (poucos centímetros), carrega um peso simbólico imenso, representando o retorno de uma parte essencial de Belém à sua casa original após treze séculos de permanência em Roma.7
A entrega da relíquia foi marcada por cerimônias solenes que envolveram autoridades civis e religiosas. O fragmento foi inicialmente exposto em Jerusalém, no Instituto Notre Dame, antes de ser levado em procissão para Belém no dia 30 de novembro de 2019.7 Atualmente, ele repousa na Igreja Franciscana de Santa Catarina, que faz parte do complexo da Basílica da Natividade.7
Para o Custódio da Terra Santa, Frei Francesco Patton, esse gesto é uma recordação tangível do mistério da Encarnação: "O Filho de Deus que se tornou criança, encarnou-se e tornou-se homem nesta terra".10 O retorno do fragmento não apenas enriquece a santidade de Belém, mas também atua como um sinal de unidade entre a Igreja de Roma e as comunidades cristãs do Oriente.7
| Local | Data | Significância Litúrgica |
| Basílica de S. Maria Maior | Permanente (desde séc. VII) | Residência das 5 tábuas principais da Culla |
| Igreja de S. Catarina (Belém) | Desde 30/11/2019 | Abriga o fragmento devolvido pelo Papa Francisco |
| Greccio (Lazio) | 1223 (Evento Histórico) | Local da primeira representação do presépio |
| Igreja de São Roque (Lisboa) | Século XVI/XVII | Abriga fragmentos doados pelo Papa Clemente VIII |
A manjedoura não é apenas um objeto de curiosidade histórica, mas um símbolo teológico central. O Papa Francisco, em sua Carta Apostólica Admirabile Signum (2019), explorou o significado da manjedoura como o lugar onde os animais se alimentam.24 Ao ser colocado ali, Jesus revela-se como o verdadeiro sustento da humanidade. Santo Agostinho já havia notado esse simbolismo ao escrever: "Deitado numa manjedoura, tornou-se nosso alimento".24
A humildade da madeira da Sacra Culla contrasta com a glória da Eucaristia, mas ambas apontam para a mesma realidade: um Deus que se torna acessível e consumível pela sua criação. O presépio, nascido em Greccio com São Francisco, foi diretamente inspirado pela veneração que o Santo de Assis nutria pelas tábuas preservadas em Roma.24 Relatos sugerem que Francisco, em suas visitas a Roma, passava longos períodos em contemplação diante da manjedoura na Basílica Liberiana (outro nome de Santa Maria Maior), o que o levou a desejar representar visualmente os "desconfortos que Jesus padeceu pela falta das coisas necessárias a um recém-nascido".24
A preservação de madeiras arqueológicas é um processo contínuo e delicado. Como a Sacra Culla é composta de material orgânico com quase 2.000 anos, ela está sujeita a diversos tipos de deterioração.8 O Bispo Franco Gualdrini, responsável pela sacristia de Santa Maria Maior, destacou a necessidade de monitoramento constante da umidade e temperatura dentro da Confessio para evitar que o sicômoro se torne quebradiço ou sofra ataques biológicos de fungos e bactérias.8
A pesquisa sobre as relíquias da manjedoura também continua no campo acadêmico. Novos métodos de análise não invasiva, como a fluorescência de raios X e a espectroscopia Raman, podem oferecer no futuro mais detalhes sobre possíveis tratamentos de preservação aplicados à madeira ao longo dos séculos, sem a necessidade de remover amostras físicas do artefato.31
As relíquias da manjedoura de Jesus representam muito mais do que fragmentos de madeira antiga. Elas são a cristalização material de uma fé que se baseia em eventos históricos concretos. Desde a sua identificação na Palestina até a sua preservação em Roma e o recente retorno parcial a Belém, a Sacra Culla serviu como um foco de unidade para a Cristandade.1
A Basílica de Santa Maria Maior, com sua Confessio repleta de mármores e o relicário de cristal de Valadier, continua a ser o destino de milhões de peregrinos que buscam o "Sinal Admirável" do nascimento de Cristo.3 Seja através das análises científicas que confirmam a origem da madeira de sicômoro ou através da teologia do presépio que nos convida à humildade, as tábuas da manjedoura permanecem como um testemunho silencioso, mas poderoso, da noite em que, segundo a tradição, o céu tocou a terra em uma gruta de Belém.1

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